O longo caminho das bicicletas

Bicicletas saem de fábrica, no Brasil, sem farol nem lanterna, situação impensável na Alemanha onde quem pedala com luz queimada é multado. Nas grandes cidades brasileiras os que saem em duas rodas para trabalhar são birutas ou suicidas. Na Holanda elas fazem parte da identidade nacional como os girassóis de Van Gogh e é tudo regrado: bicicletas têm placa e ciclistas infratores são punidos como qualquer motorista. Em São Paulo vive-se a cena ao revés: a culpa é de quem pedala. O médico Paulo Saldiva, que há 38 anos sai de casa de bicicleta para ir até a Faculdade de Medicina onde trabalha, escutou outro dia de uma motorista que por muito pouco não o atropelou: “O senhor não acha que está muito velho para andar de bicicleta?”.

A reportagem é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 07-01-2011.

Seria engraçado não fosse trágico. Na maior metrópole brasileira, a poluição mata 4 mil pessoas por ano por problemas cardiovasculares e respiratórios e o que sai dos escapamentos é responsável por 70% dessa cifra lúgubre. Mas aqui o carro é o senhor do castelo, ciclovias são praticamente uma ilusão e os ciclistas, hostilizados.

“O problema de vocês é que querem andar na rua”, escutou Saldiva de um taxista, enquanto subia a Avenida Consolação. Depois, na Avenida Doutor Arnaldo, a rua do cemitério, ele opta pela calçada “para não fazer parte do cemitério”. O médico, coordenador do Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da USP, tem uma coleção de histórias de sua teimosia em circular de bicicleta pela cidade. É uma experiência exemplar em vários sentidos.

Quando começou a lecionar na faculdade, uma coordenadora o aconselhou a deixar de vir de bicicleta ou nunca seria respeitado pelos alunos. Em uma ocasião foi surpreendido pelo carro que ganharia de presente de uma pós-graduanda (que ele obviamente recusou) que acreditava que o professor vinha pedalando porque ganhava pouco. Circular na rua do Hospital das Clínicas é sempre um problema, porque os seguranças barram. Ali não pode, explicam, porque bicicleta é veículo rápido e se um ciclista roubar alguém não há como apanhá-lo – lógica que não se aplica às motos. Saldiva é diretor de patologia do Incor, o Instituto do Coração, mas também ali não pode deixar a bicicleta, porque o estacionamento não tem seguro para a excentricidade. Quando vai ao aeroporto de Congonhas, o médico apela para a estátua de Nossa Senhora de Fátima, o único lugar onde pode prender a bicicleta. Ele confia que a santa protege o investimento e que o ladrão tema cometer uma infâmia do gênero.

Saldiva paga o preço de ser pioneiro em usar a bicicleta como meio de transporte em São Paulo. O preconceito, como sempre, tem raiz burra. A mobilidade ativa traz benefícios imediatos à saúde e ao ambiente. Quem pedala não engorda, cuida do coração, contribui para poluir menos o lugar onde vive e beneficia até os ursos do Ártico porque combate o aquecimento global. As pessoas que vivem na periferia e usam bicicletas para chegar à estação de trem ou metrô, economizam no transporte público enquanto se exercitam. Mas quem pedala tem que escapar da chacota e cuidar para se manter inteiro.

No Distrito Federal, onde o transporte público é complicado e caro, o risco de quem se aventura sobre duas rodas é alto. Até 2006, não havia ciclovias em Brasília, a despeito de ser plana feito tabuleiro. Ali foram 771 ciclistas mortos no trânsito em 15 anos. A ONG Rodas da Paz nasceu como um movimento de resistência à tragédia. Hoje o DF tem 42 km prontos de ciclovias e 68 km em obras. “Nosso maior ganho é o arcabouço legal que foi construído”, celebra o presidente Ronaldo Alves. São leis que exigem, por exemplo, que se crie infraestrutura ciclística ao se reformar uma via. Mas o desafio original continua: aumentar a segurança implantando uma cultura de respeito no trânsito.

Não é desafio pequeno. “Ando de bicicleta há 40 anos, mas aqui acho ousado”, diz Dawid Bartelt, diretor no Brasil da Fundação Heinrich Boell (ligada ao movimento verde alemão), que agora vive no Rio de Janeiro e não tem se animado a pegar na bicicleta. Bartelt vem de um país onde cidades como Hamburgo ou Bremen têm ciclovias desde os anos 20. Hoje, em centros como Münster, bicicletas respondem por 35% do tráfego. Há políticas públicas de incentivo e de proteção. Não precisa ir tão longe. Bogotá, na Colômbia, tem mais de 120 km de ciclovias.

A boa notícia é que há ventos de mudança no Brasil. Santos e Sorocaba, em São Paulo, ou Vitória, no Espírito Santo, já exibem uma malha ciclística interessante. Na capital paulista também há movimentos. Em 2005, a Prefeitura criou o Projeto Ciclista, com a coordenação da Secretaria do Verde, porque os poucos metros de ciclovia existentes estavam em parques. Em 2009, a Secretaria dos Transportes assumiu o comando da coisa, o que é um sinal de que bicicletas começam a ser encaradas como meio de locomoção. O Metrô implantou bicicletários. Hoje há 37,5 km de ciclovias na cidade e mais 54,5 km a caminho nas zonas Sul, Leste e Norte, em percursos identificados como de grande trânsito de bicicletas usadas por trabalhadores. A intenção é que em 2012 a cidade tenha 100 km de ciclovia ou ciclofaixa – uma fatia de avenida roubada aos carros aos domingos para que a população pedale como opção de lazer e os motoristas de carros comecem a ser educados a respeitar quem anda assim. Já há um departamento, dentro da Companhia de Engenharia de Tráfego, com dez pessoas pensando em ciclovias e ciclistas. É pouco, muito pouco, mas é um começo.

Fonte: IHU Online

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