O estado de exceção nunca deixou de existir

Discutir em detalhes o que é a exceção jurídica e quais são seus nexos com a biopolítica. Essa foi a linha seguida pelo filósofo espanhol Castor Ruiz, professor da Unisinos, no minicurso que conduziu dentro da programação do XI Simpósio Internacional IHU – o (des)governo biopolítico da vida humana, na tarde de 16-09-2010.

De acordo com Castor, três autores são fundamentais para se debater o tema da exceção: Giorgio Agamben, autor do conceito de vida nua, Walter Benjamin, o primeiro a mencionar o tema com essa nomenclatura, e Carl Schmitt, cuja obra tem claro viés hobbesiano por defender um poder autoritário.

Portanto, a exceção é a retirada do direito sobre a vida humana, convertendo-a em vida nua, mera vida, “uma vida que é apenas biológica e que está à mercê da força”, ponderou o filósofo. Paradoxalmente, o mesmo código positivo que garante os direitos, cria a exceção. Demonstra-se, aqui, a natureza paradoxal do direito, que é, também, constitutivo da violência. Segundo Castor, “a exceção é o reverso da ordem e dela faz parte”. É o recurso extremo para a preservação da ordem, dispositivo de controle político. A suspensão do direito só pode ser feita a partir de fora dele. Trata-se de alguém fora da lei ou acima dela? Esse é um aguilhão que não cessa de lançar questionamentos aos recursos da exceção.

Leprosos e pesteados
O que legitima a exceção é a necessidade, que ameaça a ordem. Esse recurso não é o contrário da ordem, mas o seu reverso. A ditadura brasileira, por exemplo, não foi feita contra a ordem, mas dentro de uma legalidade assegurada pelos códigos positivos vigentes, por mais espantoso que isso possa parecer. O mesmo se deu com o regime nazista.
Castor explicou que quem pode definir o estado de exceção e tem o poder de proclamá-lo é sempre a vontade soberana. “Não tenho notícias de que o povo tenha podido, em qualquer momento ou lugar, solicitar o estado de exceção”. Suspende-se a ordem com a intenção de preservá-la, e nega-se aquilo que se quer afirmar. À ideia de exceção, continua Castor, acoplam-se facilmente o racismo e, por conseguinte, os estereótipos e perseguições àquelas populações consideradas perigosas. Dessa premissa constata-se que a exceção pode ser compreendida, também, como uma técnica biopolítica para o controle das populações.

Tal controle populacional teve sua estréia com a segregação aos leprosos e, posteriormente, aos pesteados. Os leprosos eram obrigados a caminhar com sinetas, avisando de sua presença para que as pessoas não chegassem perto. Eles poderiam ser mortos sem que houvesse culpabilização do crime, uma vez que suas vidas eram consideradas apenas do ponto de vista biológico, e não de uma subjetividade e de direitos. “Os leprosos estão no cerne da genealogia da exceção moderna”, emendou Castor. “Eles eram pessoas excluídas da sociedade, pois viviam em lugares à parte, sem contato com o resto da comunidade”. No caso dos pesteados, do século XVI em diante, surge uma espécie de polícia para controlar quem estava vivo, ou morto. As cidades eram “fechadas”, e ninguém podia entrar ou sair. “Acontecia uma exclusão pela inclusão”, e os funcionários contratados pelo governo tinham a missão de contabilizar cada um dos habitantes, se havia sido abatido pela peste, ou se permanecia vivo. Ao fim da epidemia, o Estado decidiu manter esse grupo de funcionários, que constituíram uma espécie de “proto-polícia”, cuidando da segurança pública.

Medo e docilidade

Outro aspecto debatido por Castor foi que, para os oprimidos e excluídos, o estado de exceção é a norma. A exclusão, disse, é um estado de exceção permanente, e as pessoas parecem estar acostumadas a isso, como se nada pudesse ser feito para mudar. Exemplificando, citou o caso da saúde pública brasileira, e o fato de que pessoas muitas vezes morrem à espera de tratamento, ou se o conseguem, levam dias, semanas, meses. “Surpreendentemente, a normalidade vira uma exceção”.

Mas o que justificaria o estado de exceção? Para proclamar um estado de exceção se invoca, em geral, a necessidade de defender e proteger a vida dos cidadãos e, correlativamente, a segurança do Estado. Porém, até que ponto a sensação de insegurança que temos é real ou fabricada por mecanismos que nos fazem aceitar docilmente o controle e o descaso ao qual somos submetidos?, indaga Castor. Recuperando O Leviatã, de Thomas Hobbes, o filósofo provocou: “a melhor forma de conduzir uma população docilmente é através do medo”. Somos levados a crer, inspirados por um medo muitas vezes fantasioso, de que precisamos de mais e mais segurança. Por fim, essa segurança resulta em um controle e vigilância, cada vez mais cerrados e invasivos.

A genealogia do campo de exceção
Valendo-se das análises de Giorgio Agamben, Castor afirmou que a figura política do campo é o paradigma da biopolítica. O estado de exceção se caracteriza por se aplicar em um espaço geográfico ou sobre um grupo populacional definido. Nesse sentido, o campo é o espaço onde se aplica de forma livre o estado de exceção. E aqui podemos entender não apenas os campos de concentração nazistas, ou os gulags soviéticos, mas também os porões da ditadura brasileira, “onde as pessoas entravam andando e saíam quebradas, violadas”. Nesses locais a vida existente é a nua, todos são iguais a todos porque ninguém tem direito a nada.

Infelizmente, o campo não desapareceu com os nazistas. Ele é ainda muito presente em nossos dias, como na Palestina, Uganda, Sudão, nos Estados Unidos. “Os campos podem ser, também, os centros de detenção dos imigrantes”, frisou Castor. E na origem do campo podemos apontar a senzala, uma “proto-exceção” do campo de exceção moderno.
As reservas indígenas norte-americanas são o típico exemplo de campo moderno. Elas foram criadas para segregar os índios, que eram indesejados pelas autoridades daquele país por ocasião da “conquista do Oeste”. O índio que saísse dos limites da reserva incorria em crime, e se agredisse um cidadão norte-americano, poderia ser morto sem que isso gerasse culpabilização ao seu autor.

Na verdade, revela Castor, “o campo nunca deixou de existir. Ele não é o resultado de uma paranóia ou uma excrescência, mas uma figura política positiva, resultado da racionalidade instrumental técnica. É uma anormalidade jurídica que se faz normal”.

Reportagem: Márcia Junges/IHU Online

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